Biodiversidade promovida pela boca

  • Postado em 14/12/2014   por: Admin   Categoria:

Reportagem de Jefferson Pinheiro/Coletivo Catarse

A monotonia alimentar de Porto Alegre foi quebrada no meio da praça. No caso, a redenção. Frutas nativas e plantas alimentícias não convencionais (pancs) foram servidas num banquete de sabores, cheiros e texturas para centenas de pessoas que circularam pela Mostra Biodiversidade pela Boca.

Sucos, licores, pastas, geléias, pães, bolos, croquetes, pastéis, sorvetes e picolés de guabiroba, pitanga, araçá, jabuticaba, butiá, ananás, juçara e phisális. E de jatobá, urtiga, bertalha, ora-pro-nóbis, cará e muito mais. A deliciosa surpresa arrancava exclamações e interrogações: “Nossa! Como eu não sabia disso antes?”. Uma expressão se ouvia repetidamente: “Tem gosto de infância!” Faz mesmo o maior sentido tê-las comido há tempos. Muitos destes frutos e plantas estão aí desde a meninice da Terra. Criaram-se junto com ecossistemas que hoje se encontram ameaçados, como a Mata Atlântica, o Pampa e o Cerrado, de onde vieram as belezas culinárias de um sábado ensolarado, 29 de novembro. Estas plantas também servem como alimento para animais, alguns já em extinção, ou serviam, e ainda são apreciados, da alimentação dos povos indígenas às famílias que vivem no campo.

Entre a megabiodiversidade e a pobreza alimentar

Mesmo tendo, ainda, a maior diversidade biológica do planeta, com cerca de 5 mil espécies de plantas alimentícias – uma riqueza inestimável de fazer sonhar e babar qualquer chef culinário do mundo – o Brasil é levado pelo agronegócio e pela lógica produtivo-imediatista em ignorá-las e colocá-las em risco, derrubando florestas e arruinando campos para atender aos interesses das grandes indústrias com apenas quatro monoculturas (em grande parte com origem em outros países): arroz, batata, milho e trigo respondem por mais de 50% de tudo o que comemos. Um paradoxo entre a nossa megabiodiversidade e a pobreza alimentar que predomina no dia a dia, apontado pelo professor da UFRGS Paulo Brack, um dos organizadores da Mostra: “O sistema de produção agrícola e a alimentação são disfuncionais. Isso tem que acabar um dia, senão vamos terminar com a nossa espécie. A situação ambiental está neste ponto.” Ele reclama da falta de políticas públicas que fortaleçam o uso das plantas nativas, que podem cumprir também um papel importante na soberania alimentar, e ao mesmo tempo reivindica que se inibam as monoculturas e os agroquímicos: “Fazem parte de um pacote para manter a vulnerabilidade do sistema e o enriquecimento das mesmas grandes corporações do agronegócio, do oligopólio de sementes”.

Por outro lado, o professor celebra a descoberta do uso de várias plantas, como a palmeira-juçara, da Mata Atlântica, que corre risco de extinção pelo corte predatório, e que fornece polpa, também chamada de “açaí-de-juçara”, semelhante ao açaí da Amazônia, ainda mais nutritivo do que o seu primo do Norte, e mais conhecido no país. O consumo do açaí-de-juçara, através de polpas transformadas em sucos, molhos e usadas no recheio de pães e tortas pode ajudar a manter a floresta em pé, ao mesmo tempo em que gera renda para a agricultura familiar.

A redescoberta do uso destas espécies é ainda um desafio cultural carregado de preconceitos, explica o professor, também integrante do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), que realizou o evento em parceria com o Ministério do Meio Ambiente: “Alguns agricultores preferem a facilidade de plantar soja transgênica, usam uma série de agrotóxicos, que dá um certo status de modernidade. Mas a procura por alimentos funcionais, que tem vitaminas e antoxidantes, também está crescendo. Então vivemos dois movimentos: um grande que tenta estrangular a biodiversidade e outro emergente que tenta colocar ela no nosso prato”.

De viveiros e lábios roxos de juçara

Brack e todo o povo envolvido com a mostra e seus ideais pode contar também com a dedicação do Grupo Viveiros Comunitários dos estudantes de Biologia da UFRGS, coletivo que existe desde 1997 e que trabalha com frutíferas nativas e pancs, como estratégia para manutenção da biodiversidade do Rio Grande do Sul. Débora Silva, que integra o Viveiros, destaca a importância de feiras como esta para aproximar as pessoas que estão lidando com esta resistência, para se unirem e se fortalecerem. Ela e suas colegas trouxeram para o estande de alimentos elaborados com alimentícias não convencionais, mudas e cartilhas. Diz que, às vezes, os produtores também desconhecem ou tem preconceito em comercializar plantas espontâneas que se encontram no mato, porque está muito arraigada a ideia de cultivar apenas as espécies habituais e mais fáceis de vender. “As pessoas não sabem a maneira de preparar e nem o valor nutricional. Se enganam achando que é inço, que tem que capinar, botar veneno na lavoura e, na verdade, é uma planta que às vezes nasce do lado da que foi cultivada e que pode ter um valor alimentar ainda maior.” Por outro lado, o desafio também está em chamar a atenção de quem consome. “Aqueles que sequer se alimentam de orgânicos ou de alimentos mesmo, que estão mais acostumados a produtos que são processados, ficam mais distantes”. Mas ela entende que toda a pessoa alcançada é um avanço neste processo de sensibilização da sociedade.

Como Thabita, com os lábios roxos de juçara, que ficou sabendo do evento pela rádio. E veio justamente para se informar e conhecer alimentos novos. “É impressionante que frutas daqui, que poderiam estar nos nossos quintais, a gente não conheça.” Entre as descobertas, está a guabiroba. Para ela, a importância desta feira é “prioritária”. E explica: “A alimentação é também uma questão política. Somos criados numa bolha de informação. O que nos oferecem no supermercado ou nas propagandas da televisão é sempre limitado, faz parte de um grande processo produtivo. A gente não tem tanto contato com o pequeno agricultor, com a nossa diversidade, não sabe que ‘aquele matinho’ ali é comestível e faz bem”. A aposentada Ivoni Pinheiro também foi apresentada para a guabiroba, experimentou pela primeira vez o sorvete e achou “uma delícia”. Desde criança come araçá e pitanga, mas nunca tinha sequer pensado em bebê-las. “É muito interessante que se possa aproveitar de várias maneiras. Tem gente que às vezes não quer a fruta, mas o suco é maravilhoso”.

Os sucos são a especialidade da Quinta Martins, de Pelotas, de onde vieram os que mataram a sede de fruta com sabor de infância de Ivoni, e que também produz bebidas com outras variedades, como uvaia e butiá. A propriedade de Ubirajara Martins, de 02 hectares, é inspirada em outras quintas que trabalham com o cultivo de frutíferas na Espanha, Portugal, Chile e Argentina. Pela primeira vez está participando de um evento como este, e reconhece o esforço que está sendo feito para dar a estas frutas o valor que merecem. “O que nós não tínhamos é um olhar adequado para o que elas efetivamente representam”.

Da cultura do Cerrado

No Cerrado, há mais tempo se enxerga a riqueza das frutas do bioma. Priscila Olin, que participa do projeto pela conservação da biodiversidade e pela valorização de alimentos regionais, do CECANE (Centro de Colaboradores de Alimentação e Nutrição do Escolar), de Goiania, trouxe de lá rosca de jatobá com baru e coco, cupcake com geleia de araticum, casadinho de mangaba e palito de pequi. Para ela, este intercâmbio é importante, tanto para conhecerem os alimentos do Sul, que são bastante novos para os moradores do Centro-Oeste, quanto apresentar os sabores de lá para o pessoal daqui. “Trabalhamos com comunidades quilombolas. É importante as pessoas conhecerem para não deixar morrer também as histórias da região, o que faz parte da nossa cultura.” É uma visão da comida como patrimônio, e não como mercadoria.

Muito mais do que ar puro

O Ministério do Meio Ambiente garante que está preocupado em apoiar o reconhecimento destas frutas e plantas como fundamentais para a manutenção da sobrevivência da nossa biodiversidade nativa. A Mostra foi acompanhada por Lídio Coradin, gerente de conservação de espécies da autarquia federal, que está patrocinando outros eventos como esse pelo país. O ministério criou o projeto Plantas para o Futuro, que tem como objetivo identificar e chamar a atenção para as espécies nativas de valor econômico atual e em potencial. Publicaram recentemente um livro sobre as espécies da Região Sul, e outros serão produzidos sobre as outras regiões do país. Lídio sustenta: “Precisamos mostrar para as pessoas de que há um patrimônio fantástico ao alcance das nossas mãos e que o estamos jogando fora, desperdiçando. Poderíamos ter uma alimentação mais saudável e sustentável. É fundamental que a gente mostre pra sociedade, de forma clara, qual a importância de conservar a biodiversidade, mostrar a utilidade da floresta. Não apenas porque é bonita, mas porque ali está o futuro da nossa alimentação, a base da nossa medicina. É um repositório de riquezas. A floresta é muito mais do que um lugar para respirar ar puro”.

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