Comunidade do Campeche faz ouvir sua voz: cai a passarela

  • Postado em 06/10/2011   por: Admin   Categoria:

Por Elaine Tavares – jornalista

De repente, no meio das dunas, entre o verde da mata e o amarelo da areia
começou a crescer um monstro de pau. Misteriosamente vinha de um condomínio
de luxo, construído na beira da praia. Por dias, o que se via da areia era
uma profusão de madeiras, pregos e homens. A comunidade espiava, no seu
jeito ilhéu, cismando. E o monstro vindo.

Então, numa manhã, aquela língua de madeira chegou à praia, destacando-se
nas dunas como uma ferida aberta, uma grotesca chaga, um manifesto
separatista. Desembocava cinicamente, e sem pudor, no exato lugar onde por
anos vicejou o bar do Chico, espaço solidário da comunidade do Campeche,
lugar das conspirações, das lutas e das festas populares. O bar que foi
derrubado numa manhã chuvosa e gris, sem que as gentes do lugar pudessem
fazer nada, depois de levar anos em luta para mantê-lo onde estava. Vieram
as máquinas e os homens do poder. “Está sobre as dunas, tem que cair”,
diziam.

Agora, o Condomínio Essence, um pequeno monstrengo moderno, de dezenas de
apartamentos espremidos entre si, mas de alto padrão, reafirmava seu poder,
tripudiando da comunidade na qual pretende incluir mais de mil moradores. O
monstro de madeira era uma passarela que ia desde a saída dos prédios até a
beira da praia, serpenteando por entre as dunas. Um refúgio seguro para os
privilegiados moradores. Uma caminhada de 300 metros sem colocar o pé no
chão. A natureza servindo utilitariamente apenas como paisagem.

A comunidade que cismava, decidiu agir. Vieram reuniões, idas aos órgãos
ambientais, prefeitura, secretarias. Se o bar do Chico caíra, porque a
passarela haveria de ficar nas dunas? “Vai proteger”, alardeavam alguns
defensores da natureza. Mas, quem vive no Campeche sabe muito bem o que é
que protege as dunas e a natureza. É a gente do Campeche, pessoas que amam o
lugar e que amam viver num bairro jardim, onde a natureza não é coisa, é
parte de cada um. Esse povo não protege a natureza porque é bonito ver o
verde, as dunas e a praia. Protege porque o verde, as dunas, a praia estão
entranhados no modo de ser de quem vive nesse lugar, nativo ou não.

Todos os caminhos institucionais foram trilhados, mas ninguém ouviu o
clamor. O secretário do “desenvolvimento” ainda ameaçou: “Isso é o futuro.
Virão outras”. Isso porque o projeto dessa gente que administra a cidade é
fazer uma Florianópolis só para quem pode pagar bem caro por ela. E isso
inclui a natureza. Nos enormes cartazes das construtoras, a praia, a areia,
o sol, tudo está à venda, incluído no preço. E com um sabor a mais. A pessoa
ainda não precisará viver o incômodo de sujar o pé. Pode pegar sua
cadeirinha na porta de casa e ir até a beira do mar protegida pela
passarela. Haverão de banhar-se?

Na última sexta-feira (30) o povo protestou. Nada aconteceu. No dia
seguinte, voltaram as gentes. Desta vem em maior número. Sábado de sol.
Praia bonita. Passarela terminada, bem nos destroços do bar do Chico. Era
coisa demais. Uma instalação artística re-construiu o velho bar, com uma
foto do seu Chico. Alguns choravam. Outros reclamavam, indignados. Então
alguém gritou: “ao chão”. O mesmo grito dos homens do poder ao histórico bar
numa manhã chuvosa. Mas, nesse sábado, não teve máquina. Teve gente. Teve
comunidade. Uma a uma, unidas em pequenos grupos, as pessoas foram
arrancando os paus, na mão mesmo, puxando, quebrando, libertando a duna do
monstro de pau. Em pouco tempo já havia uma montanha de madeira e o
malfadado “deck” já era. Ouvia-se o riso, corriam as lágrimas, palmas. “Foi
um dia histórico. A comunidade mostrou que, unida, pode fazer valer a sua
voz”.

A passarela foi arrancada da duna, mas a luta não acabou. Essa é uma queda
de braço entre dois projetos muito claros: um deles prega o desenvolvimento
predador, ainda que só de alguns, os clientes. O outro insiste em manter um
modo de vida que avança com o tempo, mas que não destrói. Que preserva
cultura, jeito de ser, simplicidade e harmonia com a natureza. É uma batalha
titânica que cabe agora ao sul da ilha. O norte já passou por isso e perdeu.
Aqui no Campeche, agora que é noite e cai uma chuva fina, as pessoas estão
em casa, cismando e fazendo planos. Conheço meus vizinhos e sei: se depender
de cada um, a passarela não volta mais.

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