Pai-Querê: para garantir a novela das oito?

  • Postado em 26/03/2012   por: Admin   Categoria:

Pai-Querê: para garantir a novela das oito?

http://riouruguaivivo.wordpress.com/

25/03/2012 por ismaelvbrack

Por Ana Terz

A proposta é simples: esqueça energias alternativas, como a eólica,
por exemplo, pois como as ?fazendas? de aerogeradores não armazenam
energia, quando faltar vento você corre o risco de ficar sem luz e
pior, sem a novela das oito. Isto não acontece se a energia for
produzida por robustas hidrelétricas. Você não tem apagão e nem fica
sem novela.

Pode parecer brincadeira, mas este foi um dos argumentos favoráveis
usado pelos empreendedores na segunda das três audiências públicas
para apresentação do Estudo de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto
Ambiental (EIA/RIMA) da Usina Hidrelétrica de Pai Querê, realizada em
22 de março no município gaúcho de Bom Jesus. Na terceira audiência
pública do projeto, realizada na noite de sexta-feira (23) em Porto
Alegre, depois de criticado pela falta de seriedade para este tipo de
argumentação que justificasse um empreendimento de previsíveis
impactos ambientais ? proposto para ser mais um dos barramentos do Rio
Pelotas, na bacia do Rio Uruguai, a montante de Barra Grande ? o autor
da frase e presidente do consórcio entre Votorantim Cimentos, Alcoa e
DME Energética, Edson Schiavotelo tentou se justificar, alegando que
queria usar um exemplo que todos entendessem. Faltou timing e
percepção de que o contexto desta sexta-feira era outro e os
personagens idem. Foi um péssimo começo para uma discussão técnica. O
estrago apenas estava começando.

Às 19h, horário de início da audiência, o Sindicato dos Engenheiros
ficou acanhado para abrigar quase o dobro de pessoas que o auditório
de 200 lugares, localizado no segundo andar, permitia. O primeiro
improviso da noite foi adequar às pressas, um espaço no térreo com um
telão para abrigar os excedentes. Quem não ficou ?no porão?, como
alguém se referiu ao ?puxadinho do público?, ficou de pé mesmo,
durante as mais de oito horas de enfrentamento que foi o que foi e o
que durou a audiência pública.

Uma hora e 23 minutos depois do início da apresentação de praxe do
órgão responsável pela análise do licenciamento ambiental da obra, no
caso o IBAMA, e do resumo do Relatório de Impacto Ambiental
apresentado pelos empreendedores, conforme prevê a legislação, foi
feito uma pausa e, aí sim, começou o embate.

Pode-se dizer, sem medo de errar que 90% do auditório era e é contra o
empreendimento. Entre os outros 10% cabiam aos empreendedores e seu
grupo técnico, analistas do IBAMA e o pessoal do staff responsável
pela coleta das perguntas escritas e por alcançar os microfones,
através dos quais ficou mais do que evidente, ficou gritante a
surpresa e desconforto com o preparo técnico das perguntas e das
afirmações de público, familiarizado com a agenda ambiental e com o
tema proposto. Aqui não era local nem hora para falar em energia para
ver a novela das oito, como perceberam os tímidos componentes da
equipe técnica do empreendimento, vacilante e visivelmente
constrangida pelas vaias, assovios e inquietude de uma platéia que
conhecia o processo de licenciamento iniciado em maio de 2001 e depois
suspenso.

Não vamos exagerar, é claro que na platéia também estavam alguns
moradores de Bom Jesus, que vieram defender sua cota de energia e de
melhorias no cotidiano de lugares onde tudo é carência. Exemplo do
pastor evangélico que veio abençoar a obra e pedir boas casas, ou a
senhora que pediu creches, escolas e melhorias em uma vida de
reconhecidas limitações. Perde-se um sem número de espécies endêmicas
da flora e ganhamos a creche; recolhe-se parte da fauna que não for
caçada, morta ou afugentada em troca de uma escola e afogam-se
milhares de araucárias em troca da novela das oito.

Onde o Estado é falho na saúde, moradia e educação, o empreendedor e
seus cotistas são a salvação da lavoura, literalmente. É salutar
reconhecer que a senhora que chegou com cara de poucos amigos em busca
de uma tomada para seu computador, representando o Ministério das
Minas e Energia, foi até simpática com os empreendedores que fizeram
sua parte no tradicional beija mão (no sentido figurado, é claro)
sempre aguardado pelos estafetas dos pequenos poderes.

É claro que o público mostrou irreverência por parte da ala jovens
(ainda bem) e dos indignados com o desenvolvimentismo sem cara e
compromisso com riquezas que aqui são ignoradas ou pirateadas para
outros países, conforme lembrou um doutor em zootecnia da Embrapa,
francamente contrário ao projeto. Esse era o público questionador:
estudantes, doutores, posgraduados, pesquisadores, professores. O que
não impediu que um sorrateiro gaiato assobiasse, como quem chama seu
pet, toda vez que os empreendedores chamavam alguém do quadro técnico
responsável pelo elaboração do EIA/RIMA para explicar o inexplicável.

Metodologia inadequada na aferição de fauna apontou uma pesquisadora
da platéia, que há 20 anos trabalha com aves migratórias na região dos
Campos de Cima da Serra, explicando o motivo pelo qual muitas das aves
com as quais está familiarizada não constam nos estudos elaborados
pelo empreendedor. As pesquisas foram feitas em épocas distintas do
fluxo migratório e por isso a ausência de muitos elementos. Como
pretendender resgatar a fauna local sem mesmo saber o que será (se é
que será) resgatado? ?Isso vai se estender até amanhã de manhã?
reclamava outro cidadão de Bom Jesus, favorável a construção da usina,
confuso como confessou, com tantos termos técnicos.

Às 23h já se percebia o efeito do questionamento técnico científico (e
sócio ambiental, claro) da argumentação contra o empreendimento sobre
os dois lados. Em determinado momento, os empreendedores e técnicos do
projeto fizeram uma rodinha no palco, na tentativa de responder a uma
pergunta de uma jovem sobre alguns dos efeitos diretos da obra naquela
região. Era perceptível a pressão dos empreendedores sobre a equipe
técnica já deprimida pelos questionamentos e pela impossibilidade de
encontrar argumentos para negar o mais óbvio: se construída, Pai Querê
comprometerá irreversivelmente a biodiversidade do rio Pelotas, área
reconhecida como de extrema importância pelo próprio Ministério do
Meio Ambiente.

Foram exemplares (tecnicamente) as manifestações dos servidores da
Fundação Zoobotânica do RS, da Embrapa, de diversos professores da
UFRGS, da UFSM, PUC, além de ambientalistas ligados às ONGs Curicaca,
Ingá e Igré, entre outras. Todos contrários a obra e com boa memória
para não esquecer ?a fraude? de Barra Grande, a hidrelétrica vizinha
que ficou lamentavelmente conhecida por afogar milhares de araucárias
no momento final da obra, quando está se formando o lago. Reza a lenda
que nem os empreendedores nem os técnicos do IBAMA, responsável pelo
licenciamento da obra, viram seis milhões de araucárias, que estão lá,
afogadas, exalando metano.

Há opinião para tudo, é claro, mas a sensação ao final do evento,
depois de 8 horas de debate, é de que a obra de Pai Querê, é
indefensável por argumentações técnicas e ambientais. Não existem
programas ambientais capazes de compensar ou mitigar os efeitos da
obra, principalmente sobre as 149 espécies ameaçadas de extinção
listadas no EIA/RIMA. O espectro de Barra Grande não foi esquecido,
pelo contrário, foi evidenciado em quase toda a argumentação. Resta
saber se estes apelos chegarão aos ouvidos e corações de quem toma as
decisões. Assim como a gente não quer só comida, como diziam os Titãs,
nem todos querem só a garantia da novela das oito.

Compartilhe:

Contribua com o InGá e o Movimento Ambientalista

Faça uma doação

ENDEREÇO

Rua Cel. Fernando Machado, 464. Centro Histórico - Porto Alegre/RS – Brasil
Caixa Postal 1057, CEP 90.001-970
(51) 3019-8402

inga@inga.org.br