Um governo municipal com ouvidos moucos promove um autolicenciamento fora da Lei (por Paulo Brack)

*Por Paulo Brack

No último dia 3 de março, foi sancionada pelo prefeito municipal de Porto Alegre, Sebastião Melo, a Lei 12.811/21, que versa sobre o autolicenciamento ambiental (oficialmente chamada de Licença por Adesão e Compromisso – LAC). É importante lembrar que, no dia 6 de janeiro deste ano, diversas entidades ambientalistas e movimentos sociais encaminharam documento ao prefeito e ao secretário de meio ambiente cujo título era “o PLE 036/2019, aprovado pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre, é inconstitucional e deve ser vetado”. Passados dois meses, não houve nenhuma resposta ao ofício de alerta por parte das entidades. Da mesma forma, ficou sem respostas outro documento assinado por mais de vinte entidades, encaminhado ao prefeito e secretário no dia 11/02/21, com o título “Precisamos, urgentemente, de prioridade à área ambiental de Porto Alegre!, pedindo espaço de diálogo do governo municipal com a sociedade porto-alegrense sobre um tema referente ao profundo enfraquecimento da gestão ambiental de Porto Alegre.

A decisão do prefeito deixa em evidência a “nova” prática da prefeitura em tratar com descaso as entidades ambientalistas e parte importante da sociedade preocupada com os descaminhos ambientais de nossa Capital. O descaso também ocorreu com o Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM), da mesma forma não consultado. Os “ouvidos moucos” não são privilégio do governo, mas também da maioria da Câmara de Vereadores que promoveu a aprovação do original PLE 036/2019, referente à matéria, com base em uma suposta audiência pública, de 36 minutos, sem a mínima publicização, e realizada em plena pandemia. Foram 53 entidades que assinaram e encaminharam documento aos vereadores de Porto Alegre, chamando a atenção para as flagrantes inconsistências e inconstitucionalidades do referido projeto. As entidades apontaram que o Autolicenciamento Municipal não teria amparo nas legislações federal e estadual. Lamentavelmente, 24 vereadores, em sua maioria da base do governo, votaram a favor de um tema que atropela a lei, tirando o papel de controle obrigatório do órgão ambiental municipal, no caso a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS).

A Lei Municipal n. 12.811/21 será naturalmente alvo de contestação judicial, considerando que:

  1. Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente vem questionando a Licença por Adesão e Compromisso, em nível nacional, porém tendo como objeto o novo Código Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Lei Estadual no434/2020). Tal ação foi encaminhada à Procuradoria Geral da República (PGR), que acatou o pleito e encaminhou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de que sejam anulados artigos da referida Lei Estadual, em especial o inciso VI do Art. 54, no que toca a LAC. Segundo a Procuradoria Geral da República “Ao ser concedida apenas com base na unilateral declaração do empreendedor prestada por meio eletrônico, a LAC não se reveste das necessárias garantias exigidas para a proteção ambiental”. O documento destaca ainda que este tipo de autolicenciamento é um “simulacro de avaliação ambiental” e acusa o Estado de renunciar ao poder de polícia;
  2. A atribuição do licenciamento é exclusiva de órgãos de estado, tema que é garantido pela Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal no938/1981) e pela Constituição Federal de 1988 (Art. 225). No projeto aprovado, o empreendedor e o responsável técnico assumiriam, por meio das informações contidas em estudos, relatórios e declarações, o “compromisso” de cumprir as condições e restrições estabelecidas pelo órgão ambiental (tampouco definidas), podendo gerar uma licença eletrônica automática ou Declaração de Adesão e Compromisso – DAC. O procedimento eletrônico autorizaria a localização, a instalação e a operação da atividade ou do empreendimento. Especialistas em ecologia e associações de técnicos da área ambiental apontam a questão de conflito de interesses por parte de técnicos privados contratados pelas empresas requerentes da LAC, e pela inviabilidade de substituição do processo de licenciamento público, necessariamente isento, levado a cabo necessariamente pelo setor técnico dos órgãos ambientais, que seria conduzido, na proposta em questãopor parte dos próprios interessados, caracterizando flagrante ilegalidade;
  3. No Brasil, não está aprovada nenhuma lei, em nível federal, que defina regras para um eventual o Licenciamento por Adesão e Compromisso. Entretanto, existem projetos de Lei na Câmara de Deputados referentes à matéria, porém não submetidos à deliberação do legislativo federal, devido à uma série de críticas de parte de setores da sociedade, incluindo academia, ONGs, e órgãos de representação do Ministério Público, preocupados com a crise ambiental crescente e pela fragilização dos órgãos de meio ambiente;
  4. A modalidade de Licenciamento Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC) no Município de Porto Alegre, segundo o texto aprovado, estaria afeta somente a atividades consideradas de baixo e médio potencial poluidor, “assim definidas por Resolução do Conselho Estadual de Meio Ambiente (CONSEMA)”. Entretanto, no Estado do Rio Grande do Sul, o tema da LAC carece de uma Resolução específica, de parte deste Conselho. O parágrafo 1º do Artigo 54 da Lei 15.434/2020 (Código Estadual de Meio Ambiente), também contestado pela Procuradoria Geral da República, determina que o CONSEMA estabeleceria previamente os empreendimentos e as atividades que seriam licenciados na forma prevista nos incisos IV e VI do caput deste artigo. Atualmente, o andamento da discussão da LAC foi suspenso em todas as Câmaras Técnicas do Conselho, em decorrência da recente ação de inconstitucionalidade referente ao tema por parte da PGR. Em agosto de 2020, o então secretário de Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado do Rio Grande do Sul (SEMA), Artur Lemos Jr, admitiu que a matéria necessitaria regulamentação: “Vamos começar a nos debruçar com os técnicos para ver qual a melhor forma, qual a melhor estratégia de trabalho, a medida em que ficar claro quais atividades serão licenciadas e em qual formato. Antecipar esse debate é falar em cima de suposições”. Segundo o secretário, inicialmente o Estado necessita saber quais serão as atividades para saber que “tipo de fiscalização interação ou vistoria in locuas atividades necessitam”;
  5. O texto da Lei incorreu em equívoco evidente, no caso do Art. N. 9, no sentido de imputar à SMAMUS a responsabilidade de monitorar a atividade, considerando-se que o monitoramento é um procedimento oneroso de aferição dos impactos produzidos pela atividade, sendo responsabilidade do empreendedor requerente da licença, após o eventual deferimento da mesma. Talvez, a intenção do artigo teria sido “acompanhar”, em vez de “monitorar”, o que denota equívoco evidente na elaboração da proposta;
  6. O Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) de Porto Alegre, órgão central da política ambiental do município, não foi consultado ou mesmo comunicado previamente sobre a Lei do Autolicenciamento. As demais informações e critérios pera um eventual LAC tampouco existem no município. A proposta implicaria também na revogação da Resolução nº 01/2016 – COMAM, a qual “define as atividades e empreendimentos isentos de licenciamento ambiental no âmbito da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre”; em face da Resolução do CONSEMA n.º 372/2018, que dispõe sobre os empreendimentos e atividades potencialmente poluidores ou capazes de causar degradação ambiental, de âmbito local, ou seja, o enquadramento para o exercício da competência municipal no licenciamento ambiental no Rio Grande do Sul necessariamente deveria ser atualizado ou revisto. Diante da ausência de atualização frente a um eventual LAC, em nível de Estado, a Associação de Servidores e Técnicos da SMAMS (ASSETEC-SMAMS) aponta descompasso entre a proposta e as resoluções do COMAM, entendendo que  “cabe à SMAMS provocar o Conselho Municipal do Meio Ambiente, para que delibere, inicialmente através de uma Câmara Técnica e depois em plenário, por Resolução, a revogação das Resoluções de 2016, que listam atividades isentas, e definir, se assim entender, as atividades ou portes não incidentes pelo CONSEMA, como incidentes para o Município de Porto Alegre”.
  7. A experiência de autolicenciamento, inicialmente incorporada nos Estados de Ceará, Bahia e Minas Gerais, mostrou-se um fracasso pela ausência de estrutura de fiscalização, gerando enorme insegurança jurídica pela falta de controle efetivo, tendo como consequência o retorno ao sistema de licenciamento por parte dos órgãos ambientais. A matéria do autolicenciamento está sendo alvo também do Ministério Público nos Estados que o incorporaram. Cabe lembrar as tragédias socioambientais derivadas do rompimento das barragens de rejeitos de mineração de ferro nos municípios de Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, estiveram reguladas pelo autolicenciamento, implicando em menor controle por parte dos órgãos ambientais, o que gerou a morte de centenas de pessoas e evidentes e irreversíveis danos de excepcional monta, enquadrados como crimes de negligência socioambiental.

Diante dos argumentos expostos, e concordando com o entendimento e o encaminhamento dado tanto pela Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente como pela Procuradoria Geral da República ao STF e a Associação de Servidores e Técnicos da SMAMS (ASSETEC-SMAMS), consideramos que a Lei 12.811/2021 (Licenciamento por Adesão e Compromisso) é um enorme retrocesso ambiental, além de revestir-se de flagrante inconstitucionalidade, já que o poder público municipal extrapola a sua competência em relação ao Estado e à União. A inconstitucionalidade desta Lei gerará insegurança jurídica inclusive aos empresários requerentes das licenças e provocará consequências prejudiciais ao Sistema Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre e à qualidade de vida da população.

(*) Professor do Instituto de Biociências da UFRGS e membro da Coordenação do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá

Fonte: Sul21 (https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2021/03/um-governo-municipal-com-ouvidos-moucos-promove-um-autolicenciamento-fora-da-lei-por-paulo-brack/)

Imagem: rdctv.com.br

 

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